Por Fabiana Ferreira Santos e Rhuan Targino Zaleski Trindade, do núcleo Educativo & Pesquisa do MuseCom
A cultura africana e afro-brasileira se manifesta nos mais diversos campos da sociedade, carregando consigo ricas relações de memória, sentimentos, tradições, crenças e potencialidades educativas, estendendo-se, inclusive, a instituições como os museus.
O Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra foi oficializado pela Lei Federal nº 12.519/2011, em alusão à data de morte de Zumbi dos Palmares, figura central na resistência escrava no Brasil. Mais recentemente, a Lei nº 14.759/2023 transformou a data em feriado nacional, sancionada em dezembro de 2023. Essa legislação permite a rememoração da cultura, da religiosidade, das lutas e da identidade negra no Brasil, aspectos conformados pela palavra “consciência”. O estudo dessas culturas, com suas complexidades, é fundamental para o aprofundamento da história nacional. A percepção das existências, das relações de troca e o respeito ao simbólico do outro revelam a importância de pesquisas conectadas ao movimento humano e à historicidade da vida.
Visando o fortalecimento das lutas negras, o Museu da Comunicação Hipólito José da Costa (MuseCom) oferece um escopo de fontes de imprensa relevantes para a pesquisa sobre a negritude, especialmente no Rio Grande do Sul. Seu acervo abrange uma ampla temporalidade e multiplicidade de temáticas, desde a sátira até a denúncia de iniquidades.
Em 2023, o MuseCom lançou um volume do caderno educativo sobre a Imprensa Negra no Rio Grande do Sul, cujo foco recaiu em periódicos do acervo que discutiam a presença negra no estado. O jornal O Exemplo, já amplamente pesquisado, é um marco: foi o primeiro periódico com essa característica no Rio Grande do Sul, fundado em Porto Alegre em 1892. Apesar de algumas interrupções, teve grande longevidade até 1930. Ele estabelecia um perfil de imprensa focado na defesa da população negra, produção de conhecimento e arte (literatura e poesia), além da difusão de notícias, incluindo a violência policial e situações de iniquidade. Segundo Flores (2023), o encerramento d’O Exemplo em 1930 criou “um intervalo no gênero que duraria quase cinco décadas”. Posteriormente, outro jornal de destaque é O Tição, fundado em março de 1978, com duração até os dias atuais. Outros exemplos incluem O Pasquim Sul, os santa-marienses A Pua e O Succo, Negritude, Jornal das Frentes Negras de Porto Alegre, e, fora do Rio Grande do Sul, o jornal Quilombo, do Rio de Janeiro, por décadas tais jornais auxiliaram para a sobrevivência e cultura da população negra.

Assim, ao longo de suas existências, esses periódicos ampliaram a discussão sobre as diversas questões que permeavam o cotidiano das pessoas pretas. Dentre eles, merecem destaque os jornais com foco nas manifestações das religiões de matriz africana. Tais acervos mergulham nas raízes culturais e religiosas do povo negro, abrindo espaço para os saberes emanados da prática cotidiana dos praticantes. Jornais como a Tribuna da Umbanda e Religiões Afro, Folha da Umbanda, Hora Grande, Grande Axé e Jornal Saravá evidenciam a linguagem enraizada e a rica teia de significados culturais e espirituais do povo de terreiro, transformando as vivências diárias em uma vida pulsante.
O Rio Grande do Sul apresenta uma particularidade significativa. Contrariando as estatísticas sobre ancestralidade africana nos censos, o estado possui o maior percentual de adeptos de religiões de matriz afro do Brasil. Dados mostram que 3,2% da população do estado segue alguma dessas religiões, contra 1% da média nacional. Um levantamento feito em 2010 catalogou 71 mil terreiros no Rio Grande do Sul (Forster, 2025).
A abordagem desses jornais anuncia a relevância das religiões de matriz africana no interior dos espaços considerados sagrados. A interpretação que parte do indício e o olhar que se pauta na pluralidade social revelam a importância de perceber a vida, os traços culturais dos grupos e a comunicação que aborda as múltiplas existências negras.

A cada página virada, percebe-se a potência da religiosidade que atua como elemento fragmentário das ancestralidades pretas, representando aspectos de tempos sociais que ‘foram’ e que aproximam experiências no tempo presente. O terreiro não deve ser compreendido somente como um culto aos mortos, mas como um espaço onde se produz conhecimento e se valoriza o território, entrelaçando características comuns, simbolismos e experiências sociais.
Longe das passividades cristalizadas, ele surge como um agente simbólico do movimento humano, entrecruzando mundos sociais distintos, mas compartilhados. Composto por ritos, oralidades, festas, expressões religiosas e saberes tradicionais torna-se um campo de afirmação política e espiritual.
Os terreiros funcionam como verdadeiros sistemas de preservação da memória, onde muitas pessoas investiram suas vidas para sustentar cultural e socialmente a coletividade negra, contribuindo para a atuação política e social das diferentes cidades. Buscando existir e reexistir, o terreiro desempenhou um papel significativo na construção das subjetividades de sujeitos que encontram em seu espaço um caminho para se opor ao silenciamento, à exclusão social e ao preconceito. Tais jornais evidenciam que as práticas dessas religiões solidificam as relações de apoio, escuta e acompanhamento, premissas essenciais para o povo negro.
Os acervos possuem a capacidade de diálogo com as memórias ancestrais e culturais de diferentes comunidades, colaborando para que essas memórias sejam reconstruídas e contextualizadas coletivamente, o que permite uma ampliação das narrativas históricas.
Nesse contexto, tais espaços desempenham um papel crucial no processo de salvaguarda, pois esses acervos podem assumir um caráter fundamentalmente construtivo e dialógico, onde sua forma e função social colaboram diretamente para a luta antirracista.
Diante disso, romper com estereótipos exige a adequação dos acervos e dos espaços museológicos, visando uma relação de igualdade aos direitos culturais do povo negro. O museu está, portanto, para auxiliar nas reexistências, colaborando ativamente para a emancipação e o respeito à pluralidade cultural e social.
Referências
Flores, Rodrigo. A história do jornalismo negro no Rio Grande do Sul mostra a permanência das situações denunciadas há mais de um século. Jornal da Universidade, 15 de junho de 2023, Disponível em https://www.ufrgs.br/jornal/a-historia-do-jornalismo-negro-no-rio-grande-do-sul-mostra-a-permanencia-das-situacoes-denunciadas-ha-mais-de-um-seculo/ Acessado em 21 out. 2025.
Forster, Gustavo. RS é o estado com maior proporção de praticantes de umbanda e candomblé do Brasil, mostra Censo., 06 de junho de 2025, Disponível em https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2025/06/06/rs-e-o-estado-com-maior-proporcao-de-praticantes-de-umbanda-e-candomble-do-brasil-mostra-censo.ghtml Acessado em 28 out. 2025.